Globo Rural*
Uma fazenda na Amazônia, que é bom exemplo de lavoura, pecuária e floresta. E com certificado de excelência por suas práticas sociais, ambientais e econômicas.
O tipo do lugar onde quase todo mundo se conhece. Machadinho d`Oeste tem pouco mais de 30 mil habitantes. E se há alguém que todo mundo conhece, é o dono da ‘Farmácia do Gil’. Gil é o apelido de Giocondo Valle. Farmacêutico diplomado e bastante procurado. “No interior do Brasil, a farmácia é o grande portal do cidadão para o sistema de saúde”.
Famoso como farmacêutico e também como fazendeiro. O Globo Rural foi até a propriedade dele, a Fazenda Dom Aro, para conhecer sua segunda ocupação. O nome da fazenda é uma homenagem do dono ao pai dele. Dom Aro é o apelido do seu Aristides, um pequeno agricultor e pecuarista, ainda em atividade, lá no Paraná, aos 80 anos. Já o certificado que a fazenda ganhou, de boas práticas agrícolas, é um outro tipo de homenagem, um reconhecimento ao trabalho que se faz lá.
Classificado na categoria ouro pela Embrapa, o Gil foi pioneiro na região. O município de Machadinho tem 28 anos. Ele chegou há 30. E boa parte do que Gil pratica, ele trouxe de Quatiguá, no norte paranaense. Tradição familiar. “O meu nonno, pai do meu pai, ele era um ambientalista analfabeto, mas um ambientalista sem tamanho. Tinha um respeito. Principalmente pelos leitos de água”.
Dos 1.600 hectares da fazenda, 45% são de floresta, isolados dos terrenos abertos. São áreas de proteção permanente, com mata totalmente preservada ou em recuperação, e vários trechos de reflorestamento. Um dos primeiros, foi plantado há quase 20 anos. São 12 mil árvores de teca, de origem asiática. Madeira muito valiosa, que poderá ser aproveitada em mais uns 10 anos. Também estão plantadas algumas castanheiras nativas. Gil fala sobre uma delas: “Uma árvore grande, pra 18 anos. Um diâmetro de mais ou menos 60 centímetros, uma altura, aproximadamente de 18 a 20 metros, e algo como cinco anos em produção”.
A produção de castanha, para valer, vai demorar um pouco. O Gil plantou mais 12 mil árvores, em outra área, há oito anos. Entre elas, como em todos os reflorescimentos, a brotação de espécies nativas, amazônicas, é estimulada. Mas como tudo isso era encarado, tempos atrás? “Diziam que era uma coisa de doido, que eu tava pegando dinheiro bão e jogando fora. E com o seguinte argumento: viemos aqui pra selva amazônica com a proposta e a solicitação de derrubar e produzir e você vai plantar?”.
Mas o Gil foi em frente, tocando a pecuária nas áreas abertas. Recuperando pastos degradados, plantando novos. E produzindo, para sustentar a propriedade: “Sem dinheiro, a propriedade vai ficar linda, maravilhosa, endividada e o vizinho vai comprar ela. Também não resolve nada”.
O Gil conta que a certificação da Embrapa, em 2014, abriu as portas dos bancos públicos para a obtenção de financiamentos. Mas que antes disso, trabalhou com recursos próprios, inclusive da farmácia. E não foi pouco investimento para a melhoria dos pastos. Limpeza e regularização dos terrenos, calagem, adubação. Sementes de qualidade. O resultado: dois bois por hectare, que antes só engordava meio boi. “Mas nós temos todo um projeto pra chegarmos a pelo menos três animais por hectare, o ano todo, com leve suplemento no cocho”.
A fazenda pratica o ciclo completo: cria, recria e engorda. Vacas nelore, bezerros com meio sangue aberdeen. Esses, deste lote, vão ser desmamados com oito meses, e peso acima de oito arrobas. A busca por qualidade, passa por precocidade.
Responsável pelas inseminações, pelo melhoramento genético, o Eanes diz que a vantagem econômica é concreta: “Enquanto aqui na nossa região, vende um bezerro desmamado de seis arrobas, na média de R$ 900 até R$ 1.000, um bezerro daquele é praticado aqui de R$ 1.300 até R$ 1.400”.
Junto com o Eanes trabalha o Hassan, veterinário. Ele verifica a prenhez de um lote de novilhas, também precoces: “Elas receberam a primeira inseminação com 17 meses. No Brasil, a média dos animais emprenharem é 24 meses. E a gente vê, em algumas propriedades, emprenhando com 30 meses, ou seja, dois anos e meio. Encurtamos praticamente um ciclo”, conclui Eanes.
O tempo médio de engorda, só a pasto, foi reduzido, de três para dois anos. “Eu já posso iniciar uma nova safra naquela pastagem que estaria ocupada com aquele animal que ia ficar ali 36 meses, ele tá saindo com 24, então a gente já está ganhando dinheiro nisso daí”, afirma Eanes.
Isso sem falar na qualidade de um animal mais jovem: “Mesmo que a gente não tenha uma retribuição financeira desejada, porque o mercado aqui em Rondônia ainda não tá pagando por qualidade, mas aí é questão de fornecer pro mercado uma carne de boa qualidade”, diz o veterinário Hassan Oliveira Kassab.
Detalhe importante: tudo isso sem truques, garante o veterinário: “Hormônio nunca foi usado na propriedade e todo medicamento que é feito nos animais, no dia do manejo no curral, é anotado o número do animal e o histórico de medicamento. A gente respeita a carência de vermífugo, uso de vermífugo de longa ação só pra categoria que não vai ser abatida”.
Gil explica o porquê do cuidado: “Para que, quando o animal seja abatido, ele tenha resíduo zero de hormônios, de vermífugos ou de produtos dessa natureza em sua carcaça”.
O processo de certificação exigiu mudanças no curral, para aumentar a segurança de quem trabalha e o bem-estar dos animais. O manejo também foi alterado: nada de ferrão. “A gente observa, que os animais ficaram mais dóceis, sem pancadaria, sem maus tratos, só com bandeira, sem gritaria. O manejo ficou mais fácil, mas pra chegar a esse manejo, a gente teve que adaptar algumas estruturas do curral”, conta Hassan.
A parte da agricultura, a terceira do tripé proposto na fazenda, caminha para o seu estágio ideal, de produção de grãos. Uma área de pastagem degradada, foi toda regularizada, recuperada. Recebeu dois plantios de arroz, cultura pioneira, que aceita um solo mais bruto, e agora as máquinas estão preparando a terra para o primeiro plantio de soja.
E será uma área multiuso, em rotação com capim braquiária, explica o especialista da Embrapa, Vicente Godinho: “Ele pode plantar o capim sobre a soja, antes de colher a soja ou pode tirar a soja e plantar o capim. Quando joga junto, a gente chama de sobre-semeadura. Você pode usar o boi ali, três, quatro meses, só. A produção de massa naquele período é tão intensa, que tem gente confinando boi a pasto. Quando chega setembro, outubro, ele desseca e planta a soja em cima”.
Segundo ele, o capim se beneficia do solo corrigido física e quimicamente para a soja. Gosta da adubação: “Hoje pasto não é mais pasto. É uma cultura como outra qualquer”. E o capim retribui. Recobre o solo, retém humidade. E como tem raízes mais profundas… “Ele busca nutrientes que estavam fora do horizonte de exploração da soja e jogam aqui pra cima. Aquele nutriente fica acessível à soja. Um ajuda o outro”.
E a produção bem sucedida ajuda a manter outro dos três ítens analisados na certificação da Embrapa: o ambiental. Nesse tópico, a fazenda Dom Aro tem até programa de gerenciamento de resíduos sólidos registrado. Controle rigoroso sobre embalagens de agrotóxicos, armazenamento de combustíveis, sobras de lubrificantes, tudo que se recolhe nos diferentes ambientes vai para aterros sanitários de Machadinho ou de Vilhena, a 600 Km da propriedade. Ou até mesmo para reciclagem, em Cuiabá.
“Aqui não fica. É proibido. Aqui é lixo zero. E é lixo zero materializado no seu dia-a-dia. Isso tudo dá trabalho, bastante, e uma despesa razoável. Só que nós temos isso como um princípio de produção agorpecuária”, afirma Gil.
E as práticas ambientais acabam ajudando no terceiro ítem exigido pela embrapa: o cuidado social. Cercadas de árvores, as residências tem o clima mais agradável, no meio do calor forte da região. E as boas condições das moradias também contam pontos.
Os trabalhadores são registrados, tem todos os direitos. Até mais do que isso, conta Gil: “Tem férias de 40 dias por ano. Tem décimo terceiro e, no mínimo, décimo quarto. Mas eu eu já cheguei a pagar 16 salários e meio num ano aqui dentro da propriedade”.
Um dos funcionários, Atônio Teles Júnior, tem 28 anos e comanda a pecuária, no campo. Passou metade da vida trabalhando em fazendas. Chegou à Dom Aro há um ano e meio, mas quase não foi. “Todo mundo comentava que o Gil era enjoado, gostava das coisas limpas, organização, entendeu? Acostumado com os trem de qualquer jeito, aí o pessoal falava isso aí. Até eu fiquei com medo”. Mas ele acabou gostando da organização: “Funciona, muito melhor do que se for bagunçado. É mais fácil. Vida organizada é mais fácil do que bagunçada”. E faz mais um elogio ao estilo do Gil: “Ele quer que você seja igual a ele, entendeu? Ele não quer obrigar. O conhecimento que ele tem, ele quer que você saiba. Através de reunião, palestra, livro, tenho muito livro, ali, que ele traz, revista”.
“Eu não sei tudo, e nunca saberei tudo. E não tenho o menor problema em admitir que não sei determinadas coisas. Mas tenho uma curiosidade enorme. Então eu me cerco de pessoas que são muito melhores do que eu”, diz Gil.
E a equipe é mesmo unida, entrosada nas ideias da sustentabilidade: “A filosofia que o Gil implantou, e que a gente também é seguidora dela, é de cada dia melhorar mais, e a gente usar essa terra que tem aqui, esse capim, e deixar para as outras gerações, também que vem. Não só a gente poder usufruir dela, mas deixar pra filhos, pros netos.
Porque, será que só nós temos direito de chegar aqui e utilizar, retirar tudo que ela tem de potencial? E os outros? Os outros também vão poder usufruir dela”, analisa Eanes.
Segundo o seu Gil, a produção de grãos e principalmente a pecuária dão um bom lucro. Já as árvores, são uma espécie de poupança, que vai render no futuro. Além disso, essas iniciativas valorizam a fazenda, que se mantém em sintonia com mercados, cada vez mais preocupados com as condições de produção no campo.